domingo, outubro 09, 2005

"Bis in iden"

Luiz Fernando Veríssimo, um dos melhores cronistas brasileiros, escreveu, em uma das que considero suas melhores crônicas, que “o brasileiro tem a volúpia do entrave”, ou seja, transportou para seu texto, a constatação irrefutável de que, no Brasil, em sendo possível fazer as coisas mais difíceis, não há razão para simplificá-las.
A expressão latina que dá título a este artigo é, por assim dizer, uma das traduções do que se faz no país, em diversas áreas, para complicar a vida dos cidadãos e das empresas aqui instaladas. Traduzida para o português, esta expressão significa “duas vezes a mesma coisa”.
Tomemos a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa – como um exemplo para ilustrar a afirmação.
O inusitado artigo 229C
Este exemplo de duplicação de trabalho foi criado, com o advento da Medida Provisória 2.006/99, convertida na lei 10.196/01, que acrescentou à lei de propriedade industrial, entre outros, o artigo 229C.
Por força do artigo de lei acima citado, determinou-se que as patentes de produtos farmacêuticos (apenas este setor) somente podem ser concedidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial depois de revisão e prévio consentimento da Anvisa.
A lei 10.196/01 não diz, em momento nenhum, não tendo sequer sido regulamentada até a presente data, quais seriam as bases e diretrizes segundo as quais a Anvisa poderia conceder ou deixar de conceder o aludido “consentimento prévio”. Note-se que o consentimento da Anvisa é dado após o processo ter sido examinado e o pedido de patente ter sido deferido pelo INPI.
Diga-se que o referido texto de lei gerou uma série de discussões jurídicas, ainda sem consenso ou solução, a começar pelo fato de que o artigo 229C encontra-se dentro do capítulo das disposições transitórias e finais da lei 9279/96, ou seja, na parte da lei destinada a regular situações temporárias criadas pelo novo ordenamento jurídico. Apesar disso, é usado pela Anvisa para regular situações definitivas.Além disso, a Lei 9.782/99, que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e determinou sua competência, não incluiu dentro desta a “anuência” ou a revisão de processos de patente de medicamentos. Não inclui, aliás, por razões óbvias, já que a Anvisa tem como finalidade a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de medicamentos entre outros produtos.

Já no ano de 1970 foi criado, como autarquia federal, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), em substituição ao antigo Departamento Nacional de Propriedade Industrial, cuja competência, por definição legal - Lei 9.279/96 - é executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica.
É, no mínimo estranho, que se dê a uma agência de controle sanitário, que é o papel da Anvisa, ao Ministério da Saúde, atribuição de competência de outro órgão do governo, no caso o INPI (processamento e concessão de pedidos de patentes), vinculado a um Ministério totalmente distinto daquele a que está vinculado a Anvisa.
A Lei de Propriedade Industrial, em seu artigo oitavo, enuncia os requisitos necessários para que se considere uma invenção como patenteável. Estes requisitos, que são exatamente os mesmos encontrados nos tratados internacionais sobre o assunto, são os seguintes:
Ser novidade;
Conter uma atividade inventiva e;
Ter aplicação industrial.
Por óbvio a lei indica, ainda, quais as invenções que não podem ser objetos de patentes, como por exemplo, o que for contrário à moral e aos bons costumes.
Os requisitos antes mencionados são conhecidos como “requisitos de patenteabilidade”, que fazem parte de um rito rígido, com etapas definidas em lei sendo que, durante todo o processo, os atos praticados são publicados, para que qualquer interessado possa apresentar razões de oposição ao pedido de patente formulado ou discutir, em processo administrativo ou judicial, a nulidade da patente mesmo após a sua concessão.
Como já dito, a implementação da lei ficou a cargo do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, que é o órgão criado para este fim e dotado da estrutura e das competências de pessoal necessárias para o desempenho desta função.
Não por outro motivo, é assim no mundo inteiro onde agências ou escritórios especializados desempenham tal função. Os exemplos mais óbvios são o “Patent and Trademark Office” – PTO -, dos Estados Unidos da América do Norte, e o “European Patent Office” – EPO -, da Comunidade Européia. Na América Latina há o “Instituto Mexicano de la Propriedad Industrial” – IMPI -, e a “Administración Nacional de Patentes” – ANP da Argentina.
Aqueles escritórios e agências, bem como o INPI, são organizados em departamentos que se responsabilizam pelo exame de pedidos de diferentes tipos de patentes, marcas, desenhos industriais e modelos de utilidade.
No caso das patentes de produtos, estes podem ser das mais diversas áreas do conhecimento, como, por exemplo, mecânica, eletrônica, química e farmacêutica. Estes pedidos são, por óbvio, examinados por diferentes técnicos e especialistas de acordo com a área a que se refere o pedido, sempre para certificar que estão cumpridos os requisitos definidos na lei para concessão de uma patente.
Se é assim, então qual o sentido da “anuência prévia” da Anvisa criado pelo artigo 229C? Por que não há também requisito de “anuência prévia” para produtos agrícolas, veterinários, alimentares, mecânicos ou eletrônicos? Será que o Ministério da Saúde não acha o Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio e suas autarquias competentes no desempenho de suas atividades?
Outra questão importante é tentar compreender por que o Ministério da Saúde e a Anvisa despendem seus limitados recursos na manutenção de uma equipe de técnicos para revisar trabalho de competência de outro órgão do governo ao invés de aplicá-lo na sua função específica, que é a Vigilância Sanitária?
O fato é que, como já mencionado em outras oportunidades, as questões referentes à indústria de medicamentos são tratadas com uma carga de emoção muitas vezes superior à de razão, o que leva à conclusão, nunca bem fundamentada, de que todo tipo de controle que se puder exercer sobre este tipo de indústria sempre será bom. A história tem demonstrado que isto, não só não é verdade, como pode ter efeitos funestos em longo prazo.
Aliás, um fato curioso relacionado a essa “anuência prévia”: a mesma Anvisa que concede ou não a “anuência” para que se o INPI conceda patente de um determinado medicamento, é a mesma agência que concede, a terceiros, o registro de cópias de medicamentos patenteados, com prazos de vigência válidos por ainda mais de cinco anos.
Como, por estipulações contidas na Lei 6360/76 e no Decreto 79.097/97, o ato de registro tem como fim autorizar determinada indústria a colocar o produto registrado no mercado, ao conceder registros a cópias de produtos com patentes vigentes, a Anvisa, na verdade, está incentivando a violação da lei.
Questionada sobre por que age desta forma, a Anvisa alega nada ter a ver com patentes e que se o proprietário da patente se sentir prejudicado que deve processar o concorrente que registrou o produto.
O dito acima fica mais evidente quando se leva em consideração que o prazo de validade de um registro de medicamento é de 5 anos e que, para renová-lo é necessário comprovar a comercialização do produto.
Muito mais do que discutir a legalidade da “anuência prévia”, instituída pelo artigo 229C em face dos dispositivos constitucionais ou dos acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, serve o presente artigo para questionar o desperdício do dinheiro público e o acréscimo injustificável no tempo despendido no processamento de um pedido de patente de medicamento no Brasil e o aparente incentivo, pela Anvisa, à violação da lei.

Por Marcos Lobo de Freitas Levy

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